quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Não importa o que eu diga

Não importa o que eu diga, não importa o que os professores nos dizem, não importa o que os livros de história contam. Somente quando você vai até um campo de concentração, escuta as histórias dos sobreviventes, que você tem uma remota noção do que foi o período nazista. Isso é o que digo toda vez que alguém me pergunta como foi visitar um campo de concentração da Segunda Guerra Mundial.

Estava em Berlin, mas, certa manhã, peguei meus mapas e folhetos com dicas turísticas, coloquei no bolso do meu casaco, junto com meu passaporte e fui à estação de trem, rumo a Oranienburg, cidade a 40 minutos da capital alemã. Para quem gosta de história, vale muito a pena pesquisar no google sobre essa cidade. Nela se encontra um dos primeiros campos de concentração nazista, o campo de Sachsenhausen.

O vento constante e a chuva que caia em forma de pequenas flocos congelados fizeram com que uma sensação térmica de dez graus negativos atravessassem meu corpo, protegido por camiseta e duas jaquetas. Com pouco mais de vinte minutos andando pelo local, já não sentia mais minhas orelhas e meu nariz, expostos ao inverno europeu. O primeiro pensamento que tenho é: se eu to com esse frio todo estando com casacos de frio, como os prisioneiros sobreviviam a essas temperaturas sem proteções? Eis que o audioguia que eu havia alugado por dois euros me diz: Um dos castigos utilizados no inverno pelos soldados da SS era enfileirar todos os prisioneiros em frente ao bloco e deixá-los lá, parados, alinhados. Com o passar do tempo, a soma do frio intenso com a debilidade física dos presos  resultava em uma equação fatal. Após algum tempo do lado de fora das cabanas, os mais fracos começavam a cair, mortos pela baixa temperatura.

Quando as tropas aliadas invadiram a Alemanha e libertaram os prisioneiros de campos de concentração e trabalho forçado, também destruíram algumas áreas, porém ainda é possível encontrar as cabanas, com refeitórios e dormitórios, o portão, com os dizerem "O trabalho liberta". A ironia não fica apenas no portão. Sobreviventes relatam que os guardas, ao darem as "boas vindas", apontavam para a grande chaminé ao fundo e diziam: "Só existe uma maneira de sair daqui, e é através daquela chaminé".

Não importa o que eu digo, não importa o que se lê. Só quando você entra nas cabanas, sente o cheiro forte que ainda está impregnado nas madeiras, vê que no espaço da cama, onde cabe uma pessoa de maneira claustrofóbica, dormiam quatro, as vezes cinco em cada um dos três "andares" da cama, que você começa a ter uma remota dimensão do quão apertado eram as condições.

Apenas quando você sente, com suas próprias mãos, as variadas pedras que formam as pistas para o teste das botas fabricadas para o exército nazista é que se consegue imaginar a cena e a dor. Após fabricar os uniformes para as tropas de Hitler, alguns presos ainda eram obrigados a testar a durabilidade. Carregando mochilas que pesavam aproximadamente 20Kg, tal como os soldados usavam nos campos de batalha e calçando as botas de combate, muitas vezes de tamanho inferior ou superior ao pé do prisioneiros que a testava, o mesmo era obrigado a ficar correndo de um lado para o outro nessas pistas com pedras irregulares, soltas e pontiagudas. Ao comando do guarda, o "cobaia" deveria abaixar, ainda com a mochila nas costas e fazer flexões sobre as pedras e voltar a correr. Tudo isso para testar o material e a durabilidade dos calçados. Imaginar as bolhas e ferimentos nos pés, provocados pelos tamanhos errados dos coturnos causa ainda mais agonia em quem pôde caminhar pelas pistas irregulares e se aproximar, mesmo que minimamente, do que essas pessoas vivenciaram.

Quem entra nesses verdadeiros locais de tortura física e psicológica, não lê ou assiste coisas relacionadas à Segunda Guerra Mundial da mesma maneira que antes de conhecer o campo de concentração. Não há como sair a mesma pessoa de um lugar desses. Lendo os relatos de uma sobrevivente do regime de extrema direita na Revista Piauí, não há como retornar mentalmente à visita feita e conseguir construir uma imagem mental um pouco mais fiel à realidade.
Grande parte dos relatos dos sobreviventes, entre eles o de Liwia Jaffe, publicado na citada revista, envolve comida. Mais especificamente a falta dela. Essas fotos aqui ao lado são desenhos feitos pelos presos nas paredes da cozinha em Sachsenhausen. Nota-se claramente que, mesmo sendo tratados como animais, sem qualquer direito, ou até mesmo condições físicas, o senso crítico ainda gritava dentro de seus seres e se refletia nos desenhos. Os soldados raramente entravam na cozinha, o que, de certa forma, garantiu que os desenhos continuassem nas paredes.

A fome, certamente, é a mais cruel das torturas. Mas nunca tinha enxergado o ponto de vista que a filha de Liwia Jaffe disse. "Parece que a necessidade de comer, para quem passa fome, é mais forte do que a própria necessidade de viver. Havia muito poucos casos de suicídio nos campos de concentração, um gesto que não seria tão difícil. Era só atirar-se contra o arame eletrificado. Mas quase ninguém fazia isso; havia o próximo pão. (...)Não se comia para viver; vivia-se para comer.Como se os humanos se tornassem parasitas, vermes enlouquecidos, girando desnecessariamente num vácuo, desesperados atrás de migalhas, não para viver, mas simplesmente para comê-las. Comer para comer. (...) Esse processo de animalização reforçava a ideia que os nazistas tinham de que os prisioneiros eram mesmo como animais e isso os fazia sentir ainda mais ódio, como se a animalização justificasse a perseguição. Ninguém que não esteja passando ou tenha passado fome tem a mais remota noção do que ela seja e dos efeitos que ela provoca no comportamento humano, por mais ética que a pessoa seja. Ninguém sabe se a vida ou, mais absurdamente ainda, os valores de alguém são mais importantes do que comer, quando não se tem comida. Da parte dos nazistas, sua tática consistia em transformar os efeitos da carência de tudo – a fome, a sede, o frio, a sujeira – em causa; como se tudo estivesse acontecendo porque os judeus fossem originalmente como animais, e não o contrário. Essa é a formação básica do processo de alienação: trocar os efeitos pelas causas."

Após horas ininterruptas andando pelo campo, lendo histórias, ouvindo relatos, pegando uma leve chuva e sentindo muito frio, sentei nos degraus de uma das cabanas e fiquei simplesmente olhando o que havia ao meu redor. Não sei quanto tempo se passou, quanto me molhei o quão intensamente meu corpo tremia de frio. Mas não era nada, absolutamente nada, comparado ao que aqueles prisioneiros sofreram. Aquela visita ao lugar onde começou um dos mais violentos, humilhantes e terríveis capítulos da história mundial me marcou para o resto da vida. Mas de uma maneira que não é possível descrever.

Não importa o que eu disse. Creio que nem eu mesmo, tendo visto, tocado, sentido o cheiro, o frio, consigo ter uma remota dimensão do que houve naquele lugar. Mas uma coisa é certa: agora, esse capítulo da história está dentro de mim. Os prisioneiros ainda vivem, através de seus relatos, dentro de mim. Historias, relatos, filmes, reportagens, tudo ganha um novo significado, uma nova dimensão. A vida ganha uma nova dimensão.

sábado, 1 de setembro de 2012

Las calles vivas de Madrid

 Sem dúvida e sem rodeios. As ruas vivas de Madrid me conquistaram de imediato. Para um jovem apaixonado por cultura, desembarcar em uma cidade desconhecida e, em cada esquina, em cada praça, encontrar um artista de rua diferente, cada um mais criativo que o outro, é, sem dúvida, uma experiência fantástica e inesquecível.

A arte é um aspecto importante em toda sociedade. Ajuda a desenvolver o intelecto de sua população, estimula a sensibilidade e, por fim, o senso crítico. Muitos países investem nisso. Pena que o Brasil não. Ter senso crítico pode ser algo perigoso para a alta camada social.

Ser artista de rua não significa necessariamente que a pessoa é desempregada e tem que se apresentar na rua para conseguir ganhar algum dinheiro. Veja essa foto do trio musical.
Flauta transversal, violino e violoncelo. Não são instrumentos baratos. Não se aprende a tocá-los em qualquer lugar. Não são mendigos, desempregados, que estão ali por falta de opção. Pelo contrário, estão se apresentando na rua por opção. Querem ganhar algum dinheiro? Lógico, por que não? Mas, acima de tudo, muitos artistas buscam levar a cultura para os transeuntes. Quantos não tem tempo de parar, ir a um conservatório, a um teatro para apreciar um espetáculo? Então, que se faça o espetáculo na rua, enquanto se espera um metrô, enquanto nos deslocamos de uma reunião a outra.



Ah, as ruas vivas de Madrid... Mais do que a paella, o mosto, o frio agradável e a minha primeira experiência internacional, o que mais me conquistou foi a eferverscência cultural e espontânea de las calles madrileñas